Poder, pt. 2: um relato e uma breve análise da música do FBC

Ou: Sobre o sentimento estético

Kalew Nicholas
7 min readMay 21, 2023

1.

Em janeiro de 2020, após dias sem notícias do seu filho mais novo, minha tia buscou seu nome completo no Google e encontrou a seguinte notícia: “Brasileiro é morto a tiros e seu corpo é jogado no lado paraguaio do Rio Paraná”.

Ela me ligou desesperada, uma vez que mora no Rio de Janeiro e eu, a 120km da fronteira do Paraguai.

Poucos dias antes, meu primo havia ligado pra minha tia animado, dizendo ter fechado uma venda de 30 mil reais e que iria comprar a geladeira que ela quisesse. Tudo indica que, naquela mesma noite, atravessando a fronteira de barco, ele foi executado com nove tiros.

2.

Existem várias razões que fazem com que uma música adquira um significado especial para nós. E eu digo que o maior mérito de uma obra de arte é causar emoções em um espectador completamente alheio à realidade representada pela obra.

Para mim, sempre foi este o caso de Poder, pt. 2, do rapper FBC. Essa música, que intercala entre o rap e o canto, entre as descrições quase cinematográficas e o lirismo, teletransporta o ouvinte para a cena descrita, que é relativamente simples: “um cofre, cinco manos e um vigia”.

Recomendo que o leitor escute antes de prosseguir com a leitura: Poder, pt 2, do FBC.

Muito mais do que um simples “o crime não compensa”, o que o rapper pinta nessa música é uma sequência de cenas capaz de te fazer enxergar, de todos os ângulos, quais são as consequências de um crime:

1. A presença dos policiais
2. O ponto de vista da mídia (“Renato Rios narra a cena, que a rede não caia”)
3. A opinião pública (“Se o vilão não morrer no final do filme é paia”/“Alguns debocham: ‘Já foi tarde’”)
4. O ponto de vista de quem ele ama (“Vou ter saudade de te ver na rua/ Você que gostava tanto de favela/ Que pena, só conheceu a sua”)
5. E, é claro, o ponto de vista do eu lírico, tanto durante a cena quanto após, numa reflexão acerca do que fez.

O refrão consiste em uma voz grave distorcida que faz o papel do senso comum, que, por clichê que seja, não deixa de ser verdadeiro: “Poder não é para os fracos, os fracos não merecem ter poder”. Se em outra música a letra pareceria uma lição de moral, pura e simples, aqui a ambientação impede que a arte caia no didático, ainda que transmita uma mensagem clara. O que a música faz é mostrar, através de imagens, o sentido da máxima de que o poder não é para os fracos.

Há uma espécie de interlúdio que surge entre o refrão que abre a música e o verso que te insere na cena in media res:

Se algo nesse mundo faz sentido
Mesmo que eu me sinta perdido
O som da sua voz há de me dar sossego
E sei que sem ela eu não consigo

O eu lírico está se dirigindo a alguém cuja voz lhe conforta — e essa informação é importante para o final. A partir daí, somos jogados na cena através do discurso do eu lírico, que parece um monólogo durante o assalto:

Dinheiro, dinheiro, o mundo grita: “Dinheiro!”
Se forme, se case, vamos, ganhe dinheiro
Atire, atire, vamos, saque primeiro
Não fale, não falhe, os fracos morrem primeiro

A partir daqui, entra outro ponto de vista: o da mídia e o da opinião pública. Renato Rios, apresentador em um daqueles programas criminais da TV aberta, narra a cena. E a opinião pública é uma só: o vilão precisa morrer no fim do filme.

Renato Rios narra a cena, que a rede não caia
Se o vilão não morrer no final do filme é paia
Nem parecia tão difícil a fita
Um cofre, cinco manos, um vigia

O lirismo da música, em suas partes cantadas, é um monólogo a respeito da tarefa. O cofre, no fim do arco-íris, não parecia difícil de ser alcançado, mas a realidade se mostrou diferente:

Mas no fim do arco-íris não existe ouro
Só uma nota com seu nome
Só uma caixa com sua foto
No fim do arco-íris não existe ouro

“Uma nota com seu nome” pode se referir à cédula que representa o ouro, mas, nesse caso, se trata de uma nota muito semelhante à que foi escrita sobre meu primo, de modo que a música, que começa in media res, já antecipa seu final.

Após esse breve intervalo, somos transportados para o desenrolar da cena. Aqui, o eu lírico se justifica para sua amada, dizendo a motivação de seus atos e já emendando na lição de moral que extraiu do ocorrido:

Cinco tiros e minha boca se encheu de sangue
Lembrei sua boca e meus olhos se encheram d’água
Queria a chance de poder te dar de tudo
Mas minha sede por poder nos deixou sem nada

Após uma reflexão do eu lírico acerca das consequências das suas atitudes, voltamos para o momento presente: os gritos, as luzes, as vozes, a sensação de que nada daquilo é real. O rapper canta:

Pessoas gritam a todo tempo, eu devo estar sonhando
Alguns debocham: "Já foi tarde", deve ser comigo
O giroflex me deixou com sede
Daqui vendo esses flashes lembrei seu sorriso
Eu era o seu gênio da lâmpada, eu tinha ideias pro futuro
Imaturo, seus desejos quis realizar
E o que eu consegui com isso?
Foi te dar outra data triste no calendário que te faz chorar
Ouvi você dizer da viatura:
“Vou ter saudade de te ver na rua
Você que gostava tanto de favela
Que pena, só conheceu a sua”

A voz — a única que poderia lhe dar sossego — aparece no pior momento da sua trajetória. E é aí, após cinco tiros, que o eu lírico recebe o seu sossego. Mas é também nesse momento que ele perde essa mesma voz — e sabemos: “sei que sem ela eu não consigo”.

3.

Essa cena, em um noticiário, geraria uma série de opiniões pré-prontas, que iriam do “bandido bom é bandido morto” ao “olhem só mais uma vítima da sociedade capitalista”. Mas, na arte, o que vemos é uma representação capaz de transcender quaisquer ideias fabricadas: FBC te entrega uma representação fiel da realidade — e tudo isso de um jeito bonito aos nossos ouvidos. Por entregar a realidade, não uma opinião acerca desta, o rapper faz com que você se envolva emocionalmente com o que narra — e esse é o tal do sentimento estético suscitado pela representação do real.

4.

Por mais que uma obra tenha como maior mérito fazer com que alguém alheio à representação (ou mimesis, segundo Aristóteles) experiencie a sensação de estar inserido na cena, é lógico que uma proximidade com o ocorrido potencializa o efeito. Ou, trocando em miúdos, falo da tal da “identificação”.

Não tem como eu me identificar com a música, porque nunca assaltei um cofre com outros caras. Mas, por ir muito além dessa situação específica, é difícil não pensar no meu primo toda vez em que eu escuto a música.

Antes que meu primo fosse morto, seu próprio pai passou por uma cena parecida com a descrita na música do FBC — não por culpa inteiramente sua, mas por colar com as pessoas erradas. E, até poucos dias atrás, eu pensava nele enquanto ouvia — até porque, pelo sotaque mineiro e vozes parecidas, a associação era quase inevitável.

Mas foi esse trecho, especificamente, que me fez pensar no meu primo:

Cinco tiros e minha boca se encheu de sangue
Lembrei sua boca e meus olhos se encheram d’água
Queria a chance de poder te dar de tudo
Mas minha sede por poder nos deixou sem nada

Esses versos, que são cruciais para a música, resumem aquela ligação do meu primo para a minha tia falando que ia comprar a geladeira que ela queria. Ele queria a chance de poder lhe dar de tudo, mas, pelo envolvimento com as coisas erradas e as pessoas erradas, acabou deixando todos sem nada. E foi essa história, somada a outras, que me fez escrever esses versos, com os quais finalizo o texto:

Que há da minha vida
nessas tantas mortes?

Meu primo no rio Paraná:
barco furado por baixo da ponte.
De onde saíram os disparos
que aos dezenove afundaram o infante?

Minha vó tombou anacrônica,
anárquica. O sal condensa n’água
da beira do rio, da terceira margem,
e é por isso que seus rins pararam.

Minha mãe — navio de Teseu —
perdeu peça por peça nas vias náuticas.
Não houve reposição: no caminho
ver pedaços é a graça pros piratas.

Então que há da minha vida
nessas tantas mortes?
Soube duma por telefone,
soube doutra via lágrima,
doutra declarei óbito.
Numa chorei de emoção,
noutra chorei à seco,
noutra derramei ódio

mas não sei a diferença,
não recordo qual é qual.
Não entendo de balística,
de células cancerígenas,
de circulação sanguínea
ou de casos de família.

Então que há da minha
nessas tantas mortes?
Que há da minha sorte
nas carnes perdidas?
No que vou ser forte
se a força não é minha?
Do que a mente corre
se a mágoa é antiga?

Nada. Abandono todas
assim que, finda uma vida,
eu me apego à que fica;
assim que, findo meu primo,
eu ajudo a minha tia;
assim que, expulso o corvo,
eu solto uma pomba branca.

Choramos sobre os finados
pra ver se, chovendo toda tarde,
enfim emergem os tantos náufragos.

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Kalew Nicholas

Escrevo coisas de qualidade duvidosa desde que aprendi a assinar meu nome. | kalewnicholas.com.br/portfolio